Torto arado, Brasil torto

Há quem ache que os problemas do Brasil se resolveriam com a simples edição de leis, sejam elas mais rígidas ou mais minuciosas, conforme o sabor da ânsia política do momento. A verdade é que lei não é varinha de condão. Aliás, não existem varinhas de condão, nem fada madrinha, nem princesa de reino encantado. O que existem são homens e mulheres num mundo à revelia, como bem dizia Guimarães Rosa em suas veredas sertanejas. O romance “Torto arado”, do baiano Itamar Vieira Júnior, revela-nos um Brasil que precisa acertar contas consigo mesmo.

O grande vencedor do Prêmio Leya de 2018, láurea literária da editora portuguesa de mesmo nome, foi o romance que conta a história de uma comunidade quilombola encravada na região da Chapada Diamantina, no interior da Bahia. Curiosamente, o livro foi editado primeiro no país luso, para então o ser no país de origem de seu escritor – uma obra do acaso revestida das dificuldades que um escritor residente fora do eixo Rio-São Paulo se depara para publicar suas obras (será que teríamos a oportunidade de conhecer essa bela história caso o Itamar não houvesse vencido o prêmio? Fica o questionamento). Editado no Brasil pela Todavia, “Torto arado” revela uma realidade ainda esquecida pelos grandes centros urbanos. Um Brasil que, na verdade, também se encontra no interior dessas mesmas grandes urbes. Um Brasil negro, subalternizado, oprimido e não reconhecido em sua dignidade e cidadania.

O autor Itamar Vieira Júnior.

A história se passa na comunidade quilombola da fazenda Água Negra. A narrativa é dividida em três partes, cada uma narrada a partir do ponto de vista de três personagens femininas: as irmãs Bibiana e Belonísia e a encantada Santa Rita Pescadeira, uma entidade transcendental que se revela nas rodas de Jarê, religião afro-brasileira cultuada especialmente na região diamantífera da Bahia. Itamar Vieira Júnior não crava uma época exata dos acontecimentos da trama, mas, pelas pistas dadas, compreende-se tratar do período da década de 1960 até os tempos mais próximos ou atuais – arrisca-se, mas isso pouco importa. A comunidade de Água Negra vive em casas de taipa – ou de pau-a-pique ou de barro, conforme a denominação de cada região do país – em razão da ordem do latifundiário de não se permitir edificações com maior perenidade, de modo a se evitar o enraizamento desses homens e mulheres naquela terra.

Esses indivíduos chegaram a Água Negra em busca de trabalho para poderem sobreviver. Não recebem salários, como tampouco formalizam qualquer vínculo trabalhista com os proprietários da terra – os quais nunca ou quase nunca a frequentam. Assim, os homens e mulheres de Água Negra trabalham a terra e colhem seus frutos, apenas. Mas, desses frutos, hão de entregar a maior parte ao dono da terra, como numa espécie de servidão, ainda que mais se pareça a uma escravidão.

Forno à lenha em uma comunidade quilombola da Chapada Diamantina, na Bahia.

O povo de Água Negra é o povo colonizado. É composto em sua maioria de negros – talvez a única exceção seja a Maria Cabocla e seus filhos, de sangue indígena. Como esta mesma diz a Belonísia “já nasci cativa. Numa fazenda. Como você”. Essa é a realidade compartilhada por todos os membros daquela comunidade: a opressão. Quem chega a Água Negra, chega depois de muito vagar de terra em terra em busca de sua sobrevivência. Essa história, aliás, enquadra-se perfeitamente no contexto do pós-abolição da escravidão: decretou-se a liberdade dos homens escravizados, mas não os inseriram na sociedade como cidadãos portadores de direitos. Há uma memorável frase de Paulo Freire em seu clássico “Pedagogia do oprimido” que retrata muito bem tal situação: “dizer que os homens são pessoas e, como pessoas, são livres, e nada concretamente fazer para que essa afirmação se objetive, é uma farsa”. A Lei Áurea, como se deu, foi, portanto, uma farsa. O negro passou a vagar pelo ermo do Brasil e, muitas vezes, acabava nas mesmas fazendas que os escravizavam. Quando seguiam às cidades, instalavam-se na periferia do centro urbano, sem estrutura, sem conforto, sem dignidade, sem qualquer amparo do Poder Público. A diferença é que não havia mais o açoite ou a sua venda e sua descartabilidade como mercadoria – apesar que, mesmo quanto a isso, há controversa. Não havia o reconhecimento de sua dignidade e muito menos de sua cidadania. Trabalhavam em troca de abrigo e de alimento. Muitas vezes não eram aceitos ou, quando o eram, poderiam ser expulsos ou desalojados de onde estavam.

Alguns personagens de Torto arado, no entanto, passam por um processo de tomada de consciência de sua condição de oprimidos, especialmente o casal Severo e Bibiana, além de Belonísia. Desde cedo, Severo mostra-se incomodado e inquieto com a realidade que vive a comunidade de Água Negra, desde o fato de não poderem construir suas casas em alvenaria à exploração da sua força de trabalho sem qualquer tipo de remuneração. Após Bibiana descobrir-se grávida, Severo lhe propõe partir de Água Negra para viverem na cidade. Os dois, com medo da reação de seus pais ao descobrirem a gravidez de Bibiana, já que são primos, partem na calada da noite, sem serem vistos. Essa saída de Água Negra se revelará de suma importância para ganhar a consciência crítica da opressão por qual vivem. Fora da fazenda, Severo tem contato com um sindicato de trabalhadores rurais e passa a descobrir-se como cidadão e sujeito de direitos. Assim também Bibiana, que acaba se tornando professora. Aliás, é curiosa a passagem em que Belonísia reflete sobre as aulas da professora dona Lourdes em Água Negra ao se perguntar para o que servia “ouvir aquelas histórias fantasiosas e enfadonhas sobre os heróis bandeirantes, depois os militares, as heranças dos portugueses e outros assuntos que não nos diziam muita coisa”. A própria educação, portanto, tem como projeto repetir a lógica de opressão ao silenciar a voz e a história dos oprimidos.

Cerca de “quebra-dedo”.

Severo e Bibiana, em sua volta a Água Negra, tentam despertar nos moradores essa consciência crítica da realidade. Belonísia, mesmo, foi uma das que foram despertadas: “queria ouvir de Severo as explicações para o que vivíamos em Água Negra. Eram histórias que se comunicavam com meus rancores, com a voz deformada que me afligia e por vezes me despedaçava, com todo o sofrimento que nos unia nos lugares mais distantes. Que juntos, talvez, pudéssemos romper com o destino que nos haviam designado”. A libertação é o grande objetivo, e, mais uma vez com o mestre Paulo Freire, “libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela”. Afinal de contas, a liberdade é uma conquista, e não uma doação, um presente ou um favor.

Ler Torto arado é como estar diante de um espelho. É também um passeio pelo processo civilizatório brasileiro, principalmente em sua face violenta e excludente. Em pouco mais de duzentas e cinquenta páginas, Itamar Vieira Júnior nos possibilita um transporte de consciência intenso para a realidade de muitos brasileiros marginalizados. Nessa saída de nós para o outro, ao retornarmos a nós, é impossível permanecer sendo o mesmo. Nessa experiência de alteridade, num efeito bumerangue, como diria o professor espanhol José Calvo González, passamos a nos reconhecermos como Severo, Bibiana, Belonísia e os outros: brasileiros, demasiadamente brasileiros em seus percalços e em seu eterno anseio por libertação.

Publicado por Gustavo Tenório

Graduado em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto e mestrando em Direitos Humanos pela Universidade Tiradentes/SE. Coincidência, né? Sergipano, alvirrubro e supostamente deboísta. Acha que Nelson Rodrigues não devia ter morrido.

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